ENTRE TRADIÇÃO E INVENÇÃO: FESTA DE FAMÍLIA NEERLANDESA


Embora façam mais de 160 anos que famílias de origem neerlandesa se estabeleceram no estado do Rio Grande do Sul, a sensibilidade de perceber esta corrente imigratória em meio ao deslocamento dos inúmeros grupos que compuseram o período conhecido como “imigração alemã” ainda é algo bastante recente, e por isso, até o momento a historiografia carece de estudos que tratem especificamente deste grupo. Mesmo assim, para muitos descendentes a memória de uma ascendência neerlandesa permaneceu viva ou foi (re)descoberta por meio de distintas formas: seja por uma sepultura (como foi o caso da família te Roller/Troller), pelo acontecimento de um fato marcante e a publicação de uma obra (experiência da família Versteeg) ou pela realização de uma festa de família, como foi o caso da família Brouwers, cujo exemplo trataremos nesta postagem.

Em 25/03/2018 ocorreu o 17º Encontro dos descendentes da família Brauwers em Forquetinha/RS, em comemoração também aos 160 anos da imigração do casal de patriarcas Gerrit Brouwers e Aaltjen Wunnekink, do qual tive o privilégio de participar a convite dos organizadores. Gerrit Brouwers nasceu em 27/01/1809 em Ruurlo, província neerlandesa de Gelderland, e compôs com esposa e seis filhos, uma das diversas famílias introduzidas em 1858 pela empresa Montravel, Silveira & Cia para se estabelecerem na Colônia Santa Maria da Soledade (SCHÜSSLER, 2017, p. 83). Alguns filhos do casal de patriarcas promoveram migrações internas, se estabelecendo em núcleos colonizatórios do Vale do Taquari/RS no final do século XIX.

17º Encontro dos descendentes da família Brauwers. Foto: Jéferson Schaeffer, 2018.

Idealizada por Bertholdo Brauwers (in memorian), a primeira edição do encontro ocorreu em 29/03/1998 na localidade de Arroio da Seca, Imigrante/RS, após intensas pesquisas compostas por viagens e anotações, em uma época em que é preciso considerar a ainda baixa influência da internet e de ferramentas digitais, em contraste ao que dispõem hoje os genealogistas. O “guardião”, como chama Zanini (2004) o responsável pela construção desta memória, “representa o elo vivo do tempo dos antigos para o tempo dos novos” (ZANINI, 2004, p. 58), criando por meio de uma festa de família, um espaço para partilhar informações e condensar esforços na busca das origens.

Material coletado pelos organizadores e exposto na festa. Foto: Jéferson Schaeffer 2018.

Como no caso da Família Brouwers este processo de construção da memória ocorreu após mais de cem anos decorridos da imigração dos patriarcas, “reconstruções mitologizadas” (ZANINI, 2004) passaram a ser a história familiar admitida como verdade. Um bom exemplo disso é a ascendência neerlandesa, a qual os próprios idealizadores do encontro desconheciam antes de iniciarem as pesquisas, e que muitos descendentes (re)descobriram por meio da festa de família (DIÁRIO DE CAMPO, 25/03/2018).

A “vivificação do mito de origem” (WEDIG, MENASCHE, 2011) após a família Brouwers (re)descobrir sua ascendência neerlandesa, ocorreu por meio de referências étnicas com o intuito de reforçar uma identidade emergente: “Eu gostaria que ficassem de pé para ouvirmos o hino dos nossos antecedentes, do nosso Gerrit e da Aalgen, o hino holandês” (DISCURSO, 25/03/2018). Outros símbolos atestam o mito da tradição “inventada”: “As pessoas que quiserem, poderão vir com traje típico holandês. Isto tornará a festa mais tradicional e com certeza ainda melhor” (Folder do 17º Encontro dos descendentes da família Brauwers).

Folder do 17º Encontro dos descendentes da família Brauwers.

A família Brouwers, que hoje tem uma composição bastante heterogênea devido às experiências migratórias de seus descendentes, exalta diversidade: entoa o hino nacional brasileiro e emprega largamente entre seus descendentes o dialeto alemão (DIÁRIO DE CAMPO, 25/03/2018). O parentesco que é ritualizado a partir da festa, estabelece uma identidade social baseada no reconhecimento de uma origem comum, a neerlandesa (WEDIG e MENASCHE, 2011).

A introdução de elementos como traje típico, bandeira e hino holandês tentam por meio do rito que representa a festa de família, criar uma continuidade do passado histórico no tempo presente. Contudo, no caso da família Brouwers, como para alguns descendentes a ascendência neerlandesa era algo desconhecido, corrobora a tese das tradições “inventadas” de Hobsbawn & Ranger (1984), de que ao fazer referência à um passado histórico, estabelece com ele uma continuidade bastante artificial.


Referências:

DIÁRIO DE CAMPO de 25 de março de 2018. Participação no 17º Encontro dos descendentes da família Brauwers. Bauereck –  Forquetinha/RS. 2 p.

DISCURSO [25 mar. 2018]. Gravador: Jéferson Luís Schaeffer. Vale do Taquari/RS: s.e.,.Gravação em máquina digital. Discurso proferido no 17º Encontro dos descendentes da família Brauwers. Bauereck – Forqueinha/RS. 1:16min.

HOBSBAWN, Eric. Introdução: A invenção das tradições. In: HOBSBAWN, Eric, RANGER, Terence. (Orgs). A invenção das tradições. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984.

SCHÜSSLER Jr., Glecio. Família Brouwers. In: GenealogiaRS (Org). Famílias de origem alemã no Rio Grande do Sul. Vol. II. Porto Alegre: EST Edições, 2017, p. 83-85.

WEDIG, Josiane Carine, MENASCHE, Renate. Campesinato, Festas de Família e significado do parentesco. Tessituras, v. 1, n. 1, p. 150-172, Pelotas, 2013.

ZANINI, Maria Catarina Chitolina. A Família como patrimônio: a construção de memórias entre descendentes de imigrantes italianos. Campos, v. 5, n. 1, p. 53-67, 2004.

Agradecimento especial às famílias de Marino Brauers e viúva Lucena Brauvers Bauer.

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